TRADIÇÃO = ENTREGAR / PASSAR ADIANTE
Breve ensaio a partir do projeto Djeli – Estratégias de Arte e Magia, de Diego Alcantara
Texto de Diego Araúja para a Revista Gravidade
“Pobre conhecimento, esse que se encontra imutavelmente fixado nos livros mudos...”. Essa fala é de Djeli Mamadu Kuiyatê. Ampliaria o pensamento. Diria que os livros mudos também são os cérebros humanos. A mudez não pressupõe uma matéria morta. Ela está na noção de segredo também. A mesma noção que, facilmente, pode se demudar em poder. O mesmo que tocará toda e qualquer estrutura de aprendizagem – e as culturas afro-diaspóricas e africanas, sejamos honestos, não fogem a regra do poder. É preciso emancipar a noção de tradição, porque boa tradição é aquela que aceita a mudança.
Há alguns anos, Diego Alcantara me disse que para uma pessoa ser uma griot (termo francês para o djeli) ela deve ter, pelo menos, 40 anos. Ouviu isso em um curso, vivência (não saberia dizer) com uma grande djeli de Salvador, a influente Makota Valdina. Confesso que ouvi aquilo com um certo incômodo, e pensei o quanto estamos presos aos ponteiros de um relógio. Este, sim, matéria morta que imprimimos sussurros fantasmagóricos, e que custamos a assumir que é em sua mudez que depositamos a autoridade do tempo. Isso gera consequências. Protelamos a maturidade, o entendimento (como prefiro dizer) sobre as coisas. Terceirizamos a chegada do apreendido ao medidor, qualquer que seja. Os antigos disseram para nós, os modernos: “Amadurecimento é quando, sobre sua cabeça, se passou um número bom de luas”. Me recuso a aceitar que meu entendimento esteja escravizado por um aforismo aritmético.
Começarei com isso. Amadurecimento não existe.
É então que chego ao projeto de Alcantara, Djeli – Estratégias de Arte e Magia, que contou com duas obras performativas: Abiã e Assentamento. Mais ao final, vou me ater a primeira performance para, aqui, ensaiarmos alguma coisa sobre emancipação do aprendizado através da tradição.
Diego sempre se interessou sobre esse artista do corpo e das narrativas, o qual chamamos, pela importação francesa, de griot. Soma-se a isso a pesquisa poética empreendida pelo artista, chamada de “mito pessoal”. A partir das conversas com Alcântara, acredito ter, a pesquisa poética, relações com um imaginário pessoal e não necessariamente com um imaginário lançado por uma comunidade. Ou, pelo menos, de como esse imaginário cultural molda as relações pessoais, fazendo com que a própria pessoa instaure processos mitológicos de invenção, o que também se configura em um processo de aprendizagem sobre si mesmo. Enquanto o djeli tradicional se aterá a perpetuação de histórias de famílias, comunidades ou povos, o djeli contemporâneo e afro-diaspórico de Diego Alcantara, a revelia de seus 29 anos, propõe que o próprio djeli se volte para seu umbigo, suas consternações, seus gozos, seus mitos. A história vivida e aprendida pelo corpo já será narração performativa, não apenas limitada pelo ar quente das palavras, mas atravessada pela presença. Sejamos sinceros, as melhores histórias estão projetadas no corpo e nenhuma história estrangeira é mais digna de louvação do que aquela experenciada pela própria carne.
Aprendizado e entendimento não é uma questão de cronologia, mas, acima de tudo, de qualidade. Um espaço qualitativo indica uma sensibilidade para o que nos circunda. É, até mesmo, se envolver e se comover com a insignificância de todas as coisas terrenas. Isso alude a uma disposição. Muito menos, aprendizado e entendimento não se resumem a algo que está fora do corpo, como algo que nos chega e ponto. Apreender, o que quer que seja, é ressonância das relações que aceitamos produzir. É o que escolhemos hospedar em nós do que foi transmitido. Isso tudo faz com que “entender” se torne diferente de “reproduzir”. Podemos nos relacionar com qualquer tipo de transmissão, mas quando isso está a cargo de outra pessoa ou, até mesmo, quando somos nós os transmissores, será importante organizar alguma prudência.
É importante sabermos o encargo de quem transmite: criar um espaço qualitativo. Além disso, é importante compreendermos o que implica transmitir: favorecer a possibilidade de superação da própria transmissão. Essa superação não se situa na produção de um entendimento melhor de quem recebe o transmitido, mas na aceitabilidade de que estamos transmitindo algo para outros corpos e que isso provocará outros entendimentos. Se o espaço qualitativo está disposto e não há, do transmissor, uma necessidade de que haja uma reprodução, esse movimento será orgânico. Assim compreendo tradição, como a possibilidade de favorecer a produção de uma multiplicidade de conhecimentos e existências. Ser tradicional é aceitar o experimentalismo.
Contudo, há um poderoso equívoco que paira sobre nós: ser tradicional seria ser convencional. Nas culturas afro-diaspóricas do Brasil, principalmente a partir das religiosas, há também a confusão entre os conceitos de tradição e fundamento. De modo elementar, o fundamento seria algo que não pode ser variado e, até mesmo, modificado. Também seria algo com que nos relacionamos com o máximo de deferência. Uma autoridade quase que metafísica que vai de cantigas e oríkì’s às próprias divindades e espacialidades. Ainda mais, se acredita que alguns “fundamentos são fundamentais” para a existência de algo. Somente algumas pessoas, geralmente as que possuem uma “boa quantidade de luas sobre as cabeças”, podem se relacionar com os fundamentos. Logo, se atribui o conceito de fundamento a uma ética tradicional e acabamos, pois, aprisionando o movimento de transmissão a uma noção de sagrado.
Fundamento seria o entendimento que sacralizamos em nossa esfera íntima e onde estampamos uma imutabilidade. Por ser íntimo, é tentador desejarmos que ele seja imutável para os outros – como ter 40 anos para ser um djeli. A noção de fundamento só serve a ética tradicional se desejamos “fundar fundo fundamentos futuros”, ofertando a outros corpos a responsabilidade de revolucionar o que nós mesmos fundamos. Caso não haja esse desejo, não estaríamos nós sendo tradicionais, mas convencionais. Tudo o que é fundamento em mim, e que desejo manter imutável, abandono ao desconhecido de minha intimidade.
Quando entrei no Museu de Arte da Bahia para ver Abiã (onde Diego Alcantara está solando), lembrei do dia em que ele me disse sobre esse fundamento para ser um griot/djeli. Pelo fato de o projeto levar o nome (Djeli), imaginei que ali haveria uma emancipação do que lhe foi transmitido. Quem viu Abiã não estará em contato com uma performance griot convencional, mas, absolutamente, tradicional, onde Alcantara expõe seu processo de aprendizagem. O que torna curioso, e ao mesmo tempo sagaz, o nome do solo. Abiã é o não-iniciado na religião do candomblé, está aprendendo, conhecendo a espacialidade litúrgica. Há quem diga que a tradução da palavra signifique “não-nascido”. Outra coisa curiosa é que, independente da forma de aprendizagem, há uma preocupação aferrada de como o abiã entenderá o que foi transmitido. Isso demonstra que a obra performativa, a despeito do que seria uma abiã dentro de um terreiro, também emancipa a classe sacerdotal dessa preocupação. Propondo outro espaço qualitativo de aprendizagem a partir do processo mitológico-pessoal de invenção.
Diego Alcantara, respondendo a si próprio, demonstra que a melhor forma de respeitarmos nossos antigos é revolucionando o fundamento que herdamos deles. Independente se são ancestrais ou somente mais velhos, talvez não haja forma mais bonita de mantê-los vivos. Quase uma prova de amor.
Comments