Não-Tempo, Memória e Performance Afro-diaspórica
O tempo só vive e só pode ganhar sua dinâmica através de uma substância. A despeito de uma ética mercantil, de uma ordem capital, o tempo, em sua dimensão irrestrita, só vive no corpo. Não é algo de externo, é uma questão de IN. Isto posto, em termos de corpo, o tempo das ordens, da horizontalidade, não existe enquanto presença ou enquanto performance. O fenômeno tempo, em qualidade de presença performativa, é vertical por natureza. Nasce de certa intangibilidade. O tempo, não como coisa horizontal onde repousa os acontecimentos em decurso, mas como uma consciência da carne do indivíduo negro contemporâneo.
Esse é o axioma criado por mim para o que vibra hoje em minhas iniciativas em arte. Chamo esta motivação poética provisoriamente de Estética Para Um Não-Tempo, que ganha essa negativa devido às seguintes problemáticas:
1 – Fugir, e sugerir a fuga para quem se relaciona com minhas proposições, de um entendimento do tempo como ordem quantitativa, posto que essa ética do tempo é o da crueldade e de uma certa violação da experiência humana. Este tempo, que só se preocupa com demarcadores, é a criação fatal da humanidade. A humanidade, por sua vez, como quem se deixa morrer depois do exaure resultante do ato criativo, é a criação fatal deste tempo – quem sabe, em algum nível, isso explique o porquê de a história ser a mais brutal das disciplinas.
2 – O segundo motivo desta negativa se situa na evidente colonialidade no hoje – aqui, em específico, no que se refere às pessoas, grupos e/ou comunidades negras. Este fantasma do colonialismo que, consequentemente, se manifesta no tempo quantitativo a partir das relações e percepções entre a pessoa negra e o mundo que a circunda. Um modo de percepção a partir de uma ferida celular, fazendo com que este mundo, que envolve a pessoa negra, esteja disposto para tragar sua existência. Não-Tempo seria o tempo decolonial manifestado numa presença emancipada, múltipla e negra, situando a recriação de conexões afro-diaspóricas e estabelecendo um conflito entre a existência da consternação e a existência de potências.
3 – O terceiro ponto: sugerir uma experiência estética que se distancie, cada vez mais, de uma relação pautada na interpretação ou na clássica hermenêutica. Cedendo espaço para um erotismo imersivo e estético. Com efeito, isso me obriga a criar uma espacialidade poética transdisciplinar, sugerindo uma espécie de transpercepção. Isso tudo nasce do corpo negro.
Uma consciência da carne do indivíduo negro contemporâneo. Um estudo singular de sua própria existência e experiências. Este processo requer uma demanda específica para o corpo negro e afro-diaspórico. Uma vez engajando a sua percepção frente ao mundo que lhe oprime, ou seja, percebendo de modo incorporado, enfrentará uma série de sensações, e um processo de reminiscência, fazendo com que nasça signos sucedidos de uma crise (conflito) entre história, política, ancestralidade e contemporaneidade. Por isso, será manifesta a importância do corpo negro em recriar ou, melhor dizendo, inventar conexões, tendo em vista que a herança colonial rompeu com quase todas. Seria um ato religioso em seu sentido mais tradicional.
É muito possível que este corpo negro enfrente ou se relacione com muitos duplos de si mesmo, com sua multiplicidade de presenças e possíveis IN-temporalidades performativas – Achille Mbembe chamará este processo de “crítica do tempo” –, posto que a relação com o tempo qualitativo, com o Não-Tempo, se dá na memória psicofísica deste indivíduo negro. A derradeira amarração, o amálgama, que fará com que o ato de lembrar e o ato de inventar sejam unívocos. É aqui que minhas construções estéticas ganham o seu primeiro adejo.
Por mais estranha que pareça esta informação, Não-Tempo é o único tempo que o indivíduo negro pode dominar, posto que se configura enquanto relação sensível consigo mesmo e desde que esteja disposto a interagir com a produção de signos e duplos emergentes da crise. Se de algum modo observamos este processo como medida inacessível, isso se deve a fragmentação estrutural das histórias de cada corpo afro-diaspórico, da colonialidade como uma das faces do contemporâneo – afinal, isso remonta 430 anos de destruição estrutural de nossas casas e subjetividades. De modo óbvio, o processo é complexo, mas não inacessível ou distante, já que o Não-Tempo vive no corpo negro, este presente que “se arrasta simultaneamente na direção do passado e do futuro, ou, mais radicalmente, busca aboli-los[1]”. Este é o conceito de ancestralidade para os corpos afro-diaspóricos, ou pelo menos deveria ser: ancestralidade não como algo passado, mas como algo encarnado no agora, no corpo do indivíduo negro contemporâneo, uma imanência negra.
Para tal, se o objetivo é a expressão, o indivíduo negro contemporâneo deve se apropriar de uma linguagem que ele próprio deve inventar. Transformar esse fenômeno de assimilação do Não-Tempo em performance, melhor, numa ética entre presenças performativas negras, é a ambição de minha Estética Para Um Não-Tempo.
Frantz Fanon nos apresenta a proposta decolonial como atitude e processo[2]. Por esse prisma, acredito que as artes da cena e, principalmente, as artes do corpo, interajam com essa apresentação de modo decisivo. A expressão ou performance (atitude) do Não-Tempo, de uma subjetividade negra é uma escolha ética, uma escolha decolonial de emancipação da presença negra e suas multiplicidades em estado performativo e estético. Uma performance que se motiva na totalidade da relação de seu criador com o Não-Tempo, poderá se configurar num ato de extrema exposição, e por isso ela será frágil, já que estaríamos lidando com uma nova proposição ética (e estética). Estaríamos nos relacionando com a “Múltipla Presença Performativa” de um corpo negro, tendo acesso, a partir dessa materialidade artística, ao que lhe é de mais íntimo.
Estética Para Um Não-Tempo se situa em minha extrema necessidade de me colocar em situações de invenção (de lembranças) de linguagens a partir da conexão (ou reconexão) com minha memória afro-diaspórica. Situações estéticas onde minhas presenças performativas se correlacionem. Por memória afro-diaspórica, entende-se a reconstrução, por meio da invenção-lembrança, de uma casa em ruínas que, portanto, me lançará para a ampliação ou o além de sua espacialidade – seja este além a pré-casa ou a pós-casa. Esta ação acontece simultaneamente durante o processo de organização de um ato estético performativo em Não-Tempo.
É neste contexto que a produção de presenças pode ser também relacionada com uma nova produção de signos – talvez sejam a mesma coisa. Esta produção ditará a ética e o modo de relação entre os outros indivíduos e a obra de arte. O Não-Tempo poético, ou seja, o Não-Tempo enquanto ato criativo, é o mesmo Não-Tempo como proposição estética. A partir desse entendimento, creio que para um corpo afro-diaspórico o signo é uma produção, e não um código disponível, a plano cultural, para que seja decifrado, lido ou interpretado corretamente, como se no signo existisse somente “a verdadeira significação”. Talvez, numa obra em qualidade Não-Tempo, a ideia de comunicação deva ser substituída pela ideia de afetação que se origina de uma espacialidade erótica e imersiva, que, intencionalmente, resultará no outro uma crise do pensamento, do comportamento ou, até mesmo, uma crise dos desejos.
Sendo múltipla a produção de presenças, logo, a produção de signos, isso implicará, cada vez mais, na criação de um conjunto de empecilhos que pode arrefecer a relação em arte pautada na interpretação. O mundo não está pronto, na maioria das vezes, a interagir com produções de presenças e signos que não estão dispostos para uma leitura, mas, sim, para produzir outros signos na relação com o outro. Logo, seria como exigir o mesmo ato crítico com o tempo para quem interage com a obra: produzir seus próprios signos, suas próprias presenças, a partir de uma afetação nascida da experiência estética. A organização crítica que se valha dos métodos interpretativos comuns, não passará de uma canalhice estética para com uma obra em Não-Tempo.
Portanto, interagir com o Não-Tempo seria interagir com uma espacialidade. A concepção de casa lançada aqui é precisamente para que eu possa, em minhas inciativas em arte, entender a memória afro-diaspórica como terreno que transcende a minha existência. Produzindo presenças (signos) que ao mesmo tempo que sou eu são muitos outros.
A casa no processo de lembrança-invenção é a primeira arquitetura, geografia ou qualquer outro espaço íntimo que me espalhará para outras complexidades e duplos: pessoas, lugares, comidas, objetos, texturas, ancestrais, costumes, vozes, animais, etc. Presenças intemporais, um cruzamento de relações e linguagens que favorecerá a produção de uma presença múltipla, justamente pela espacialidade que sempre estará disponível a se ampliar. Não-Tempo é uma questão de interatividade criativa, de incorporação entre o corpo e a memória afro-diaspórica que lhe é inerente. É nesta totalidade onde o indivíduo negro contemporâneo pode ter domínio sobre o tempo, é a partir desse encontro que a performance pode nascer múltipla e abundante.
Tudo isso, acontecendo ao mesmo Não-Tempo.
[1] MEBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
[2] Para melhor entendimento é interessante entrar em contato com toda a produção de Fanon. Contudo, aconselho Os Condenados da Terra.
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